Friday, September 15, 2006

“hoje esqueci-me de gostar de ti”

Narrativa que escrevi para uma curta metragem, dei-lhe o nome de:

“hoje esqueci-me de gostar de ti”



...quando dou por mim acordo com as mãos na cara em sobressalto, sinto a cara húmida e pegajosa, os lençóis de seda enrolados na cabeça, um respirar ofegante e compulsivo de quase soluçar em pânico. Levanto-me rapidamente com os olhos esbugalhados e a boca aberta querendo imitir algum som, mas não me saía nada, nenhum tipo de som, nada, apenas um arfar intenso, exausto, gasto como se tivesse andado a correr a noite toda, olho então em redor e penso, “não reconheço isto, onde estou, onde é que estou?”, frio e fraco tento dar um passo em direcção ao nada quando subitamente uma tontura cai sobre mim e caio de novo no sofá. Sinto a cabeça dorida, e uma adrenalina forte que me faz tremer, talvez por ter acordado de tal forma.
Sentado no sofá e a olhar em frente reparo num écran estilhaçado com uma imagem turva por trás que me parece a TV shop, respiro fundo concentro-me e conto até 10 tal como minha mãe me ensinou em criança quando me embalava nos seus braços depois dos pesadelos. Sinto-me melhor, mais calmo, tento olhar de novo em volta, ainda a recuperar da tontura e já reconheço o sitio onde estou...vejo no fundo da sala uma mesa rústica, que comprei numa loja de antiguidades em tempos, sobre a mesa estavam dois copos de cristal e uma garrafa de champanhe que guardava para um momento especial e que estranhamente, não me recordo de a ter aberto, então atordoado esfrego os olhos, ainda húmidos e pegajosos, e continuo a olhar mais em redor e vejo a sala num alvoroço, completamente desarrumada, nada normal em mim.

Olho para mim e vejo a roupa totalmente rasgada... interrogo-me do que se terá passado, mas não consigo pensar, oiço um som desconcertaste que me perturbava o raciocínio, era o vinil do gira-discos que chegara no fim, levanto-me para o desligar, ainda a cambalear tropeço e caio em cima de um corpo que não gemeu com o meu peso da queda... foi então que vi alguém no chão, mesmo ao lado do sofá de onde eu tinha acordado, então pela primeira vez, desde que acordei, consegui soltar um grito da minha boca que estava seca, um grito esquizofrénico de desespero.
Arrasto-me de costas no chão com a ajuda dos cotovelos e dos calcanhares para longe, até bater com as costas na parede... entro em pânico mais uma vez! Dobro as pernas junto do meu peito e apoio a testa nos joelhos, e começo a tremer a soluçar a chorar e a interrogar-me mais ainda...”meu Deus o que se passa aqui?” Não me recordo de nada, absolutamente nada! Lá fora oiço as sirenes da polícia e ambulância.

Não me consegui aproximar do corpo estendido no chão, tinha medo, ainda em agonia sinto as lagrimas do meu choro baterem nas costas da minha mão, estranhamente vejo lagrimas vermelhas, já em terror e preocupado com a situação, sinto um frio assombroso a trepar pela minha coluna até a cabeça, levanto-me e corro freneticamente para a casa de banho, olho-me ao espelho que esta pendurado na parede, meto as mãos na cara e completamente assustado recuo e caio dentro da banheira.

As lagrimas estavam vermelhas de facto, mas vermelhas porque iam limpando o sangue em toda a minha cara até caírem sobre a minha mão. Já não sabia o que fazer, então levanto-me numa luta frenética, ponho-me de pé saio da banheira, saio da casa de banho, corro pela casa fora sem saber para onde vou ao certo... dou por mim a vaguear no mesmo sitio de trás para a frente, de frente para trás, bastante pensativo, quando sou interrompido pela campainha da casa e um bater compulsivo na porta... parei, fiquei quieto na esperança de quem fosse que batia á porta desistisse, enganei-me, a campainha continuava a tocar e a porta a bater e a bater e a bater...e oiço alguém gritar um nome que não o meu... “será engano?” penso eu.
Completamente coberto de receio que percorre o meu corpo e me faz tremer as pernas como canas de bambu ao vento, volto e olho pelo buraco da porta e vejo uma rapariga muito bonita, ela continua a tocar a campainha e a abater compulsivamente na porta, quando vou a perguntar quem é, oiço a voz dela, aquela voz despertou algo em mim, um sentimento estranho, bom, amargo, confortante e indeciso, como se um turbilhão de sentimentos me tivesse atingido, a frase que ela disse não me fazia sentido, mas deixou-me a pensar...

“Quem Ganhou? Quem, Quem, Quem?”

Ali estou eu, sem saber que fazer, com um corpo na minha sala, supostamente morto. Aquela voz dava-me confiança e desconforto ao mesmo tempo, talvez por não conhecer a sua cara. Dava por mim a bater na minha própria cabeça para me abstrair da porta e daquela voz ofegante e inesgotável, as pancadas que eu dava na cabeça funcionavam como um mecanismo de auto concentração enquanto passeava pela sala e ouvia aquela voz a citar a mesma frase vezes sem conta.
Fui até junto do corpo e debrucei-me, mas não lhe consegui tocar, olhei para o sofá onde tinha acordado e vejo um lençol branco, agarrei e tapei a pessoa, quando cubro o corpo reparo no lençol a ensopar-se com sangue, entro em desespero, agarro a pessoa pelos braços e arrasto-a para a casa de banho, lavo a minha cara e grito “já vai, já vai, um minuto” volto a correr para a porta de entrada e abro-a apenas 10 cm sem tirar as correntes, olhei, e ela sem me deixar falar mete as mãos na cara e diz... “Foste Tu!?”

O pânico apoderasse de mim, e com medo do que ela pudesse saber sobre aquele corpo que estava na minha sala, irracionalmente fecho a porta, tiro as correntes de segurança, volto a abrir a porta, e com o braço direito agarro-a violentamente nos colarinhos e puxo-a para dentro de casa e empurro-a contra a parede do hall de entrada, como que se tratasse de um só movimento, e digo-lhe para que não grite.
Meto ambos os braços encostados á parede em torno dela para que não fuja e pergunto-lhe: “Quem és tu?”... Ela em pânico abraça-me e beija-me na boca e diz “gosto tanto de ti, ainda bem que foste tu”, completamente atordoado daquela situação afasto ela de mim e digo: “O que estás a dizer? Ganhei o quê? Quem és tu? Conheces-me de onde? Responde ”Quando ela vai a começar a responder ás minhas questões...oiço baterem de novo á porta e aos gritos: “Policia, abram” entrei em pânico, lembrei-me do corpo na casa de banho escondido, ela aproveitou a situação, baixa-se e foge por baixo dos meus braços e senta-se no sofá. Eu já não sabia o que fazer, baixo os braços a cabeça, dou um suspiro profundo caminho em direcção a porta e numa aceitação interior olho para trás como se o meu mundo irreal e desconhecido tivesse chegado ao fim e entrego-me ao destino.

Abro a porta , meto a cabeça de fora e eles dizem: “boa noite, recebemos noticias de desacatos e tiros neste andar, está tudo bem?” quando vou para responder aparece a rapariga por trás de mim em trajes menores e o cabelo molhado e pede desculpas aos policias pelo incomodo causado, mas que era apenas um filme que estávamos a ver com o volume bastante alto. Os polícias foram-se embora e eu questionei-me porque teria ela feito aquilo. Fecho a porta, olho para ela e sento-me calado e pensativo ao seu lado. Ela olha para mim mete a mão na minha cara e diz mais uma vez:

“Ganhas-te, e eu gosto tanto de ti”Levanto-me rapidamente do sofá, vou até a janela e vejo a chuva a cair na rua enquanto ela se volta a vestir. No meio do silêncio e de costas para ela pergunto-lhe;
“Quem és tu? O que fazes aqui? Porque me ajudaste?” Ela começou a chorar e a gemer... Enervei-me com a situação e mais uma vez com um tom de voz mais agressivo disse: “Responde... Porque?” Quando me viro para olhar para ela, o meu mundo caiu de novo, recuo com medo até esbarrar na mesa que suportava os copos de cristal e o champanhe e caio no chão. Vejo um homem com um lençol branco na mão com manchas de sangue e na outra mão uma pistola apontada á cabeça daquela rapariga que não conhecia. Fiquei sem palavras, sem movimentos, sem reacção alguma, estava incrédulo. O corpo ensanguentado que eu pensava estar morto na casa de banho, estava agora ali a olhar para mim com uma arma apontada a cabeça de outra pessoa.

Mais uma vez o silêncio encarregou-se da situação, e eu não tinha nada para dizer!
Sento-me congelado, indefeso, um animal enjaulado, sem sitio para fugir.
Estivemos ali alguns minutos parados que quase jurava ter sido uma interinidade. Parecia que nos estávamos a estudar uns aos outros, a testar a capacidade de quem quebrava primeiro e soltava as primeiras palavras, afinal de contas não havia nada a fazer, quem estava a tomar conta da situação era o corpo que anteriormente eu julgava morto na minha sala. Levanto-me do chão com os braços no ar, as palmas das mãos á frente do corpo e peço encarecidamente a todos com uma voz tremula: “calma, calma, vamos ter calma, eu não sei o que se passa aqui...”
Ao mencionar tais palavras reparei que quem empunhava a arma teve uma reacção que me assustou bastante, ele franziu as sobrancelhas cerrou os olhos e os dentes, e com o punho compactou o lençol ensanguentado que segurava na mão e lançou-o para a minha cara violentamente, e com os dentes serrados sem abria a boca disse: “cala-te e enrola-o a volta da cabeça dele” eu ainda tentei questionar o porquê, ao qual ele rapidamente tira-lhe a pistola da nuca e empurra-a na minha direcção, ela cai nos meus braços, e pela primeira vez olha para a pessoa que segura a arma e grita:

“Rodrigo és tu? “

Questionei-me interiormente e tal nome não me suscitava nenhum tipo de sentimento. Eu continuava ali, apenas sabia o nome do corpo que pensava estar morto e que a rapariga o conhecia... Senti novamente agitações emocionais dentro da sala, olhares concentrados com muita tensão acumulada. Ela tenta dirigir-se a ele dizendo que tinha saudades e que gostava muito dele, ao qual ele agressivamente respondeu-lhe com uma pancada na testa com o punho da pistola, e diz:

“Sai daqui! Não venhas com lamúria, eu ouvi tudo!”
“Estas satisfeita com este jogo duplo? Era isto que querias?”

Agarra nela com um braço apenas, levanta-a do chão e atira ela de novo para os meus braços dizendo furiosamente:

“enrola o lençol na cabeça dela, já!”



Ela começa a chorar e a soluçar de tanto medo e pede desculpas ao Rodrigo e diz que gosta bastante dele, o seu corpo dava sinais de cansaço e fadiga psicológica.
Não suportou muito tempo, o corpo dela dá de si e cai no chão de joelhos.
Senti que o Rodrigo fraquejou ao ver tais sinais, e começou a lacrimejar também, ele baixa a arma olha para mim e para ela, reparei que ele estava pensativo, reparei também nas lágrimas vermelhas que lhe escorriam pela cara, subitamente, ele muda de feição como se tivesse ido buscar forças ao universo para ultrapassar a situação.
Ele voltou a levantar a arma e apontou para ela e em seguida num gesto rápido apontou-a para mim, foi então que percebi que era altura de dizer algo e aproveitar o momento de fraqueza e sensatez dele e disse-lhe:

“ Rodrigo, tem calma, não sei o que se passa aqui, mas tem calma”

Susana ouviu as minhas palavras e começou a gritar com as mãos na cabeça.
Rodrigo prontamente mandou-nos calar:

“Calem-se!”
“Susana se te oiço gritar mais uma vez meto-te um tiro na cabeça”
“ E a ti já te disse para lhe tapares a cabeça com o lençol ”


Achei melhor acatar as ordens dele, reparei que Susana (finalmente sei o nome dela), estava a sangrar da cabeça devido a pancada que sofreu da pistola. Enrolei o lençol de seda em torno da cabeça dela e senti um deja vu, estranhamente já me tinha deparado com aquela situação de ver o lençol a ficar ensopado com sangue, foi ai que me recordei que o tinha feito ao mesmo corpo que eu pensava estar morto ao lado de um sofá e que naquele momento estava com uma arma apontada a cabeça da Susana.
E eu pensava para mim “meu deus, quem é a Susana, e o que fez ela de tão mal?”
Foi então que olho para os olhos do Rodrigo e senti nitidamente o que ele iria fazer em seguida, vejo ele aproximar-se com a pistola em punho na direcção da Susana com intuito de acabar com a vida dela, num acto heróico inconsciente, fico louco e corro na direcção dele, mas sem efeito, ele deferiu-me um golpe tal que rodopiei e cai de barriga no chão, foi ai então que oiço tais palavras:

“ és bonita até quando choras, e eu não te quero ver a cara “

Subitamente oiço alguém a suster o ar nos pulmões, um tiro na sala, encolho-me com medo e fecho os olhos, sinto um corpo cair no chão, não me recordo se soltei um berro, mas sinto uma agonia enorme que me aperta o coração. Sinto um silencio durante vários segundos, abro os olhos e vejo uma arma ao meu lado, olho para trás e vejo Rodrigo deitado no chão com um buraco na cabeça, não aguentei, sempre tive um estômago fraco e vomitei ali mesmo. Levanto-me tiro o lençol da cabeça da Susana, ela agarra-se a mim e grita o meu nome: “Diogo” e eu digo-lhe: “ já passou, tem calma “ meto as minhas mãos a volta dela, ela apoia a cabeça no meu ombro a chorar, quando subitamente ela solta um grito enorme que me deixou surdo momentaneamente do ouvido direito, olho para trás e vejo outro homem na minha sala com uma arma em punho ainda a fumegar do cano e ainda a apontar para nós.




Instala-se o caos naquela sala, mas eu não oiço nada, parece que o tempo parou ali e fiquei surdo, olho para a Susana e ela tem a boca aberta, parece que esta aos gritos, mas não a oiço. Aparentemente aquele terceiro homem veio do meu quarto e esteve todo o tempo ali perto de nós sem nunca termos dado conta.
O homem aproxima-se de nós com a arma em punho e sem pensar duas vezes dispara a poucos centímetro da minha cabeça, senti aquele tiro como se fosse em mim, o corpo da Susana devido a violência do disparo sai projectado para trás, não tive força para a agarrar em meus braços, ali estava eu coberto de sangue e a dar em louco, quando num ataque de loucura ou até mesmo esquizofrenia, completamente fora de mim, mesmo sem saber quem eu sou ao certo, agarro na arma do Rodrigo e aponto-a ao homem que matou a Susana, fiamos ali os dois em pé, estáticos, de armas apontadas, tal como um duelo, de olhos nos olhos.


Ele decide-se a falar primeiro e pergunta-me.
“Tu não sabes que se passa aqui?” ao qual respondi: “Não”Ele baixou a cabeça, suspirou fundo sem largar a arma que tinha na mão e diz:
“Deves ter perdido a memória devido á pancada que levaste na cabeça?”
“Perdi a memória? Mas como?”... perguntei eu rapidamente.


Foi quando ele me diz que estava a lutar com o Rodrigo na sala, quando eu entro em casa e assustado com a situação, larguei uma mala de viagem e corro para o meu quarto, fui buscar uma arma que guardo por cima do guarda fatos, enquanto eles lutavam, quando volto á sala, escorrego no champanhe que estava derramado no chão e caio, ao cair bato com a cabeça no mármore da lareira que apoiava uma fotografia que ele achou muito estranha e perdi os sentidos. Foi então que me voltei, olho para o topo da lareira, baixo a arma, e caminho na sua direcção de boca aberta, enquanto isto ele continua a explicar a situação:


“eu estava com a susana naquele sofá a beber um pouco de champanhe, estávamos a comemorar a minha promoção na empresa, subitamente batem a porta e a Susana abriu, foi quando o Rodrigo entrou violentamente, empurrou a porta, saca de uma arma que tinha atrás das costas, empurra ela e diz-lhe que ela vai ter que decidir ali com qual dos dois fica, ao que ela diz ser incapaz e pede que lutemos pelo seu amor e sai de casa a correr, era uma luta injusta visto que ele tinha uma arma na mão e eu não, foi então que o Rodrigo se dirige-se a mim com uma arma na mão, e eu de coração acelerado, agarrei a tua arma, disparei, e acertei no peito do Rodrigo que caiu imóvel no chão. Foi então que agarrei em ti deitei-te no sofá, meti o lençol na tua cabeça para estancar o sangue que escorria da tua cabeça e fui-me deitar na tua cama...entretanto fiquei lá e ouvi tudo o que se passou até aqui. Mas não te preocupes... eu já entendi a tua situação também...”






Foi quando ele levanta a cabeça olha para mim com lagrimas nos olhos e diz:

“ também gostava de ter perdido a memória”

Enquanto isto eu continuo a andar na direcção da lareira e olho para a foto, e não quis acreditar no que os meu olhos viam...eu não queria mesmo acreditar no que via;
”Eu a beijar a Susana?”... Oiço um tiro atrás de mim, e uma foto cai a meus pés.
Recordo-me perfeitamente da primeira frase que soltei naquele preciso momento:

- “hoje esqueci-me de gostar de ti”

Hélder Silva

Copyright Outubro 2005